domingo, 9 de agosto de 2009

Capítulo 7 FATAL MESMO É CRER NA FATALIDADE. Dialogicidade, Superação, teoria e prática da Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico Existencial

Capítulo 7
FATAL MESMO É CRER NA FATALIDADE.
Dialogicidade, Superação, teoria e prática da Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico Existencial



“... somente o ISSO pode ser ordenado. As coisas não são classificáveis senão na medida em que, deixando de ser nosso TU, se transformam em nosso ISSO. O TU não conhece nenhum sistema de coordenadas.
(...) o mundo ordenado não significa a ordem do mundo. Há momentos em que, sem motivo aparente, a ordem do mundo se apresenta como presente. Percebe-se, então, o tom do qual o mundo ordenado é nota indecifrável. Tais momentos são imortais, mas são também os mais fugazes. Deles não se pode conservar nenhum conteúdo, mas, em contrapartida, a sua força integra a criação e o conhecimento do homem, as irradiações de sua força penetram no mundo ordenado, fundindo-o incessantemente. Tal é a história do indivíduo, tal a história da espécie.
M. Buber


“A única coisa que pode vir a ser fatal ao homem é crer na fatalidade.
A crença na fatalidade é falsa desde o princípio. (...) A profecia baseada na objetividade tem valor apenas para quem ignora a presença. Aquele que é subjugado pelo mundo do Isso é obrigado a ver no decurso inalterável uma verdade que esclarece a confusão. Na verdade tal dogma deixa subjugar-se mais profundamente ao mundo do Isso. O mundo do Tu, porém, não é fechado. Aquele que na unidade do seu ser se dirige a ele conhecerá profundamente a liberdade. E tornar-se livre significa libertar-se da crença na servidão.”
M. Buber.


“E eis o que segredou-me a vida: ‘eu sou o que deve superar-se indefinidamente’.”
F. Nietzsche.


“Sim, para o jogo do criar, meus irmãos, é preciso um sagrado dizer-sim: sua vontade quer agora o espírito, seu mundo ganha para si o perdido do mundo.

“Querer liberta: eis a verdadeira doutrina da vontade e da liberdade ...

“Todo ‘foi’ é um fragmento, um enigma, um horrível acaso -- até que a vontade criadora lhe diz: ‘Mas assim eu quis!”
F. Nietzsche.

"Ensinei-lhes toda a minha arte e finalidade de minhas pesquisas: condensar e reunir num o que no homem é fragmento e enigma e terrível acaso.
Poeta, advinho e redentor do acaso, ensinei-lhes a trabalhar o futuro e, criando, a libertar tudo o que já foi.
Libertar o passado no homem e transformar o 'era' até que a vontade possa dizer: "Mas foi assim que eu o quis! É assim que o quero.!
Foi isto que eu chamei a sua salvação, isto só que eu lhes ensinei a chamar salvação.
F. Nietzsche.


A Filosofia Dialógica da Relação de M. Buber, como fenomenologia e como ontologia da relação, e do humano, tem um poder singular para a compreensão do processo e do que podemos entender como produção dos efeitos da psicoterapia.
Muito além da mera conceituação das palavras princípio Eu-Isso e Eu-Tu --, ou da tola confusão de palavra com verbalização, mesmo que sub vocal, que tão freqüentemente se lhe atribui, a filosofia da relação oferece-nos preciosas perspectivas. Não apenas para a formulação, ou para a compreensão, de um método de psicoterapia ou de psicologia, mas, fundamentalmente, para uma compreensão acerca do como o humano, no seu mero ser como devir, foge, supera, desvencilha-se, do dado e do estabelecido. Como o ser humano transcende o determinado -- o útil, cotidiano e inevitável mundo e vida do Isso, mundo, e vida, da coisificação e da coisidade, da fatalidade, do decurso inalterável das coisas. Através da criação e re-criação de si e do mundo, que naturalmente lhe permite a possibilidade natural do evento da relação, do dialógico, na sua superabundância de forças e de plasticidade.
É tardia a dedicação específica de Buber ao processo da psicoterapia ou do trabalho psicológico. O que lhe ocupava era a ontologia da relação e do humano, era o processo de (auto) engendramento do ser (devir) do humano, e do humano mundo.
Com uma compreensão do dialógico e de suas possibilidades na vida e no mundo humanos, Buber nos oferece uma perspectiva de compreensão do que naturalmente pode ocorrer de melhor no processo da psicoterapia ou do trabalho psicológico de base fenomenológico existencial. Antes de ser processo ou efeito psicoterapêutico, todavia, a possibilidade das forças e a possibilidade plástica do dialógico na vida e no mundo humanos são naturalmente uma dimensão fundamental, e natural potencialidade, latência constante, do processo e das forças da existência. Ou seja: a mudança, a irrupção da criatividade existencial, a superação cri-ativa de um indesejável decurso, que tornou-se aparentemente inevitável, que trás o cliente ao consultório, e que é possibilitada pela vivência do dialógico, é uma possibilidade natural, uma necessidade, da existência, sempre latente e naturalmente atualizável, na medida em que possamos intuí-la e afirmá-la. De modo que Buber deixa claro para nós que o que vemos de melhor no processo da psicoterapia ou do trabalho psicológico, o melhor do crescimento humano, a mudança terapêutica, a superação, a potencialização da criatividade existencial a partir da mobilização de uma super-abundância de forças, é, na sua efetividade, a natural implicação da humana abertura para o dialógico, a sua afirmação, a atualização do sempre latente e disponível potencial para a relação, a assunção plena da concretude da existência, em sua contingência, afetividades e devires.
Buber nos mostra, de um modo cristalino, como a relação, o dialógico, borra a consistência da dureza do mundo e da vida do isso, do mundo e da vida coisificados, e de seus poderes, funde estanquização e estagnação tensa do mundo e da vida coisificados, e infunde-lhes movimento, plasticidade renovada, dinamismos, possibilidades, libertação de suas potencialidades. Como a relação e o dialógico suspendem a gravidade da força de rolo compressor do decurso aparentemente inalterável das coisas, e dela engendra novas formas e possibilidades. Mostra também como, num esgotado e estereotipado eu, carente de atualidade, o dialógico e a relação infundem a possibilidade do devir, a possibilidade de sua própria super abundância renovada de forças, de cor e brilho.
E tudo isto, evidentemente, não é privativo da psicoterapia ou do trabalho psicológico, de um método, abordagem, ou situação determinada. De fato, trata-se apenas da natural atualização da sempre presente, não importa o quanto negligenciada e enfraquecida, potencialidade humana para o dialógico e para a relação.
Busco neste texto apresentar alguns destes aspectos da Filosofia Dialógica da Relação, explicitar elementos que evidenciem a sua importância para a aprendizagem e para o trabalho psicoterapêutico e psicológico, assim como para a vida humana em geral. Para tal, uso abundantemente o próprio texto de Buber, no Eu e Tu , evidentemente a melhor forma de exposição de suas perspectivas. De modo que o texto segue fundamentalmente, por uma tempo, as pegadas de Buber em um trecho de sua obra.


Buber tematiza a coisific/ação do mundo e da vida e as características, implicações e potencialidade da dimensão do mundo e da vida coisificados. Em primeiro lugar, a sua necessidade, a sua inevitabilidade, a sua importância para a vida humana individual e coletiva. Tematiza, a seguir, a latência sempre presente do dialógico na vida humana, a importância da preservação da força de sua possibilidade e potencialidade, neste mundo e vida coisificados. E a implicação do enfraquecimento e perda desta possibilidade. Aborda, de modo brilhante, o modo como a relação dialógica pode converter as implicações decorrentes da coisificação ilimitada da vida e do mundo, a causalidade ilimitada, o decurso inalterável das coisas, a fatalidade, a crença na inalterabilidade do decurso e da fatalidade.

1. COISIFICAÇÃO, COISIDADE E A POSSIBILIDADE DA RELAÇÃO NO MUNDO DAS COISAS.


“Somente o ISSO pode ser ordenado... O TU não conhece nenhum sistema de coordenadas.
Porém, ... o mundo ordenado não significa a ordem do mundo.”
M. Buber .

Praticamente tudo o que não é coisa na vida humana, apesar de configurar o que existe de mais importante e definidor no humano, é fugaz, efêmero, pontual e sofre o melancólico destino de coisificar-se, de constituir-se inevitável e necessariamente em coisa, em Isso. Sejam os objetos materiais, sejam os afetos, o pensamento, a alteridade, as relações, o Tu vivido no instante. Buber coloca:

“... a grande melancolia de nosso destino é que cada TU em nosso mundo deve tornar-se irremediavelmente um ISSO. Por mais exclusiva que tenha sido a sua presença na relação imediata, tão logo esta tenha deixado de atuar ou tenha sido impregnada por meios, O TU se torna um objeto entre objetos, talvez o mais nobre, mas ainda um deles, submisso à medida e à limitação. A atualização da obra em certo sentido envolve uma desatualização em outro sentido. A contemplação autêntica é breve; o ser natural que acaba de se revelar a mim no segredo da ação mútua, se torna de novo decomponível, classificável, um simples ponto de interseção de vários ciclos de leis. E o próprio amor não pode permanecer na relação imediata; ele dura mas numa alternância de atualidade e de latência (...).
Cada TU, neste mundo é condenado, pela sua própria essência, a tornar-se uma coisa, ou então, a sempre retornar à coisidade.”

Esta inevitabilidade da coisificação, a transformação necessária do Tu em Isso, é natural, não configura algo de negativo em si. É própria da condição humana, e é ela que permite a objetivação e a organização do mundo e da vida humanos. É ela que permite o desenvolvimento da cultura, do conhecimento, da língua, dos usos, da arte, do ordenamento científico da realidade. Na verdade, a nossa vida cotidiana desdobra-se normalmente na esfera do Eu-Isso, do mundo da coisificação e da coisidade, e é, ela própria, coisificada. E isto é natural. O dialógico, a atualização da possibilidade do Eu-Tu é eventual, episódica e fugaz. E isto é natural.

“A palavra princípio EU-ISSO não tem nada de mal em si porque a matéria não tem nada de mal em si mesma.

O que é fundamental reter, todavia, é que as coisas, o mundo e a vida coisificados assim constituídos não são absolutos em sua condição. Guardam em latência em si sempre pronto o potencial de uma “reversibilidade”, o Tu neles encantado, e a possibilidade de seu “desencantamento”.

“O ISSO é a crisálida, o TU a borboleta. (...) não como se fossem sempre estados que se alternam nitidamente, mas, amiúde, são processos que se entrelaçam confusamente numa profunda dualidade. ”

Empobrecimento e fatalismo na condição humana começam a desenvolver-se quando esta latência do TU no ISSO – ou seja, latência da possibilidade da relação dialógica no mundo e na vida coisificados -- começa a enfraquecer-se ou a extinguir-se. Quando sobre o mundo do Isso não paira, ou enfraquece-se, a possibilidade do Tu, da latência do Tu por sobre o mundo do Isso, como “quando o espírito pairava sobre as águas (Buber)”. Quando o mundo coisificado, o mundo do ISSO, ganha autonomia e absolutiza-se, quando o homem assim submetido ao poder das coisas e da vida coisificada perde a possibilidade da relação dialógica com a natureza, com o humano, com o misterioso. Na possibilidade do dialógico reside especificamente o poder humano de regeneração, de recriação e de ordenamento criativo do mundo das coisas.
É sempre uma possibilidade, e um desafio para o homem, a preservação constante de seu poder de momentânea e pontual relação Eu- Tu. A relação EU-TU na esfera da relação com os seres naturais, na esfera da relação inter humana, ou na relação com o mistério espiritual do Ser em sua vida.

A possibilidade arrisca-se cada vez mais, e o desafio potencializa-se (Buber), na medida em que o homem vive e na medida em que dura a vida humana, tanto coletiva quanto individual. Porque o desenvolvimento da história de sua vida -- da mesma forma que o desenvolvimento das civilizações -- implica inevitavelmente num inexorável e progressivo crescimento, e progressiva estruturação, e potencialização como tal, do mundo e da vida do Isso, do mundo e da vida coisificados.

“A história do indivíduo e a história do gênero humano (...) manifestam um crescimento progressivo do mundo do Isso. ”

Preservar a possibilidade e a potencialidade da relação dialógica na condição em que cresce, potencializa-se e estrutura-se a coisificação e a coisidade: o poder do mundo do Isso. Este é, para Buber, o desafio propriamente ontológico e ontogênico do ser humano.

“(...) O que existe de mal é o fato de a matéria pretender ser aquilo que existe. Se o homem permitir, o mundo do ISSO, no seu contínuo crescimento, o invade e seu próprio EU perde a sua atualidade, até que o ‘pesadelo sobre ele’” (o mundo do isso alienado) “e o ‘fantasma no seu interior’** ” (o eu carente de atualidade) “sussurram um ao outro confessando sua perdição. ”

Como é próprio, o contato do homem com o mundo do Isso implica a experiência, o conhecimento e a utilização. Funções que permitem ao homem utilizar as coisas, utilizar o mundo e a vida coisificados, para a sua conservação, para o provimento e facilitação de sua vida. De modo que, à medida em que há um crescimento progressivo do mundo do Isso, desenvolve-se também a capacidade humana de experimentar e utilizar. E como capacidade é necessidade, potencializa-se a possibilidade de atrelamento cada vez maior do homem ao mundo das coisas e o empobrecimento e a perda de sua capacidade de relação.
“O aperfeiçoamento da função de experimentação e de utilização realiza-se, geralmente, no homem em detrimento de seu poder de relação. ”

Buber comenta que o aperfeiçoamento da função de experimentação e de utilização pode implicar no desenvolvimento da experiência indireta ou a “aquisição de conhecimento”. Ou, uma redução da utilização a uma “aplicação especializada”, que são desenvolvidas de geração a geração. Erroneamente, este processo pode ser compreendido como “vida espiritual”. Buber enfatiza que a expressão é fundamentalmente equivocada:

“... pois esta “vida espiritual” representa geralmente um obstáculo para a vida do homem no Espírito; ela é, quando muito, a matéria que, depois de vencida e modelada, a vida do espírito deve consumir. É um obstáculo, pois a capacidade de experimentação e de utilização se desenvolve no homem freqüentemente, em detrimento de sua força-de-relação, único poder, aliás, que lhe permite viver no Espírito.”

O espírito tem para Buber um sentido particular, sempre ligado ao mundo e ao vivido:

“O Espírito em sua manifestação humana é a resposta do homem a seu Tu. ... O homem vive no espírito na medida em que pode responder a seu Tu. Ele é capaz disto quando entra na relação com todo o seu ser. Somente em virtude de seu poder de relação é que o homem pode viver no Espírito. ”
“... Com efeito, quando o espírito age livremente na vida, ele não é mais espírito ‘em si’ mas espírito no mundo, graças a seu poder de penetrar no mundo e transformá-lo. O espírito não está ‘consigo’ a não ser no face-a-face com o mundo que se lhe abre, mundo ao qual ele se doa, que ele liberta e pelo qual é libertado. A espiritualidade esparsa, debilitada, degenerada, impregnada de contradições, que hoje representa o espírito, poderá realizar esta libertação somente na medida em que atingir novamente a essência do espírito, a faculdade de dizer Tu. ”

Seguindo na perspectiva de sua tradição hassídica, Buber dirá: “Não conheço nenhum caminho para Deus que não passe pelo mundo.” Esta perspectiva será reafirmada na conversão espiritual que se sucede à crise decorrente do suicídio de um orientando seu:
Para Buber, assim, manter a possibilidade e a potencialidade da relação dialógica é manter a possibilidade e a potencialidade da vida espiritual. Uma vez que a vida no espírito é, para Buber, a resposta existencial do homem ao seu Tu. É esta possibilidade desta resposta que permite ao homem exercer e subverter os seus limites e o seu ilimitado como ser, e libertar-se e constituir e reconstituir a esfera do mundo e da vida coisificados.
Mas o paradoxo humano, implica no fato de que a relação com o Tu é momentânea e excludente, é instantantânea, é vivência imediata e face-a-face.

“... Somente o silêncio diante do Tu, o silêncio de todas as línguas, a espera silenciosa da palavra não formulada, indiferenciada, pré-verbal, deixa ao Tu sua liberdade, estabelece-se com ele na retensão onde o espírito não se manifesta mas está presente. ”

A própria resposta do homem a seu Tu conduz à coisificação:

“Quanto mais poderosa é a resposta, quanto mais ela enlaça o Tu, tanto mais o reduz a um objeto. ... Toda resposta amarra o Tu ao mundo do Isso. Tal é a melancolia do homem, tal é também a sua grandeza. Pois assim surgem no meio dos seres vivos o conhecimento, a obra, a imagem e o modelo. ”

O homem vive, assim, num mundo de coisas e não pode evitar a coisificação no mundo e em sua própria vida. O mundo e a vida coisificados servem ao homem e organizam a sua realidade. A possibilidade do Tu, todavia, reside em cada aspecto das coisas e é própria de sua natureza:

“Tudo o que (...) se transformou em Isso, tudo o que se consolidou em coisa entre coisas, recebeu por sentido o destino de se transformar continuamente. Sempre de novo -- tal foi o sentido da hora em que o espírito se apoderou do homem e lhe mostrou a resposta -- o objeto deve consumir-se para se tornar presença, retornar ao elemento de onde veio para ser visto e vivido pelo homem como presente. ”

Buber entende desta forma tanto a vida individual do homem quanto a sua vida coletiva:

“As estruturas da vida humana em comum extraem a própria vida da plenitude da força de relação que lhes penetra por todas as suas partes e sua forma encarnada eles a devem à ligação desta força ao espírito.(...)

E aqui cabe mais uma vez a observação de Buber:

A espiritualidade esparsa, debilitada, degenerada, impregnada de contradições, que hoje representa o espírito, poderá realizar esta libertação somente na medida em que atingir novamente a essência do espírito, a faculdade de dizer Tu


2. IMPLICAÇÕES HUMANAS DA PERDA DA POSSIBILIDADE DA RELAÇÃO NO MUNDO E NA VIDA COISIFICADOS.

Esta potencialidade sempre latente de relação no mundo e na vida coisificados, a possibilidade de sua transformação é frustrada na medida em que, perdendo ou enfraquecendo esta possibilidade da latência da relação dialógica a eles inerente, nos conformamos e nos submetemos à vida e ao mundo coisificados, e tendemos conferir-lhes um caráter absoluto e excludente:
“O homem que se conformou com o mundo do Isso como algo a ser experimentado e utilizado, faz malograr a realização deste destino: em lugar de liberar o que está ligado a este mundo ele o reprime; em lugar de contemplá-lo ele o observa, em lugar de acolhê-lo, serve-se dele. ”
“A vida (...) do homem não pode (...) prescindir do mundo do Isso, sobre o qual paira a presença do Tu (...). A vontade de utilização e a vontade de dominação do homem agem natural e legitimamente enquanto permanecem ligadas à vontade humana de relação e sustentadas por ela. Não há má inclinação até o momento em que ela se desliga do ser presente; a inclinação que está ligada ao ser presente e determinada por ele é o plasma da vida (...), e sua inclinação separada a sua destruição. ”



CAUSALIDADE
Diferentemente do momento de relação, o mundo e a vida coisificados, o mundo do Isso, são constituídos por objetos, por coisas, que dão-se limites umas às outras, que permitem uma organização espácio-temporal, que possibilitam a organização do mundo humano, o conhecimento, a elaboração dos artefatos humanos, a cultura, os usos, a linguagem, a ciência. Como constituído por coisas que limitam-se e determinam-se reciprocamente, o mundo do Isso configura-se como mundo da causalidade, em que cada evento passa, necessariamente, por causado ou causador. O mundo do dialógico é o mundo da atualidade e da atualização de presenças.
“O mundo do Isso é o reino absoluto da causalidade. Cada fenômeno “físico” perceptível pelos sentidos e cada fenômeno psíquico pré existente ou que se encontra na experiência própria, passa necessariamente por causado e causador. ”

A absolutização, autonomização, do mundo do Isso, o enfraquecimento do vínculo com o dialógico, e o empobrecimento da possibilidade da relação -- possibilidade de qualquer forma sempre latente -- levam a um enfraquecimento da possibilidade de renovação e de regeneração do mundo e da vida coisificados. Mundo e vida coisificados que passam a caminhar à deriva, ao sabor da causalidade e do mecanismo da dinâmica das coisas. A causalidade, inicialmente fugaz, ganha poder, intensifica-se, transformando-se no próprio motor do destino. Liberdade e destino* já não se conjugam necessariamente. Seu vínculo está empobrecido e impotente. E o que prevalece, turbilhonante, é a pura causalidade do mundo e da vida coisificados. O destino caiu na causalidade, e transforma-se em absurdo e tirânico demonismo.
“O destino sábio e soberano que, harmonizado com o sentido da plenitude do universo, reinava sobre toda a causalidade primitiva, transmudado agora num absurdo demonismo, caiu nesta causalidade. (...) agora não importa o que façamos, o Heimarmene (‘destino’, em grego), estranho ao espírito, nos oprime, colocando sobre nossas nucas todo o peso da massa inerte do universo. ”


O DECURSO PROGRESSIVO DAS COISAS, A FATALIDADE, E O SEU DOGMA
Enfraquecida a possibilidade e a potência da relação no mundo e na vida coisificados, a causalidade ilimitada conduz a vida e o mundo ao decurso progressivo e inalterável das coisas, e à crença no decurso. Conduz a vida e o mundo à fatalidade, e à crença na fatalidade. É interessante observar que fatalidade não tem para Buber, primariamente, o sentido de infortúnio, de evento desafortunado. Só secundariamente é que a fatalidade se constitui como tal para Buber. Primariamente, para ele, a fatalidade é, fundamentalmente, o decurso inalterável, fixado, inevitável, irrevogável das coisas. Potencializado este decurso pela crença na sua inevitabilidade, na sua irrevogabilidade, num suposto caráter inalterável e fechado: potencializado pela própria crença na fatalidade.
No mundo contemporâneo, esta crença no decurso e na fatalidade é reforçada pelos vários tipos determinismo, e pelos vários tipos niilismo constituídos na sociedade moderna.
Referindo-se ao pensamento biologista, ao pensamento historicista e a outros determinismos e suas leis, Buber observa:
“Por mais diferentes que possam parecer um ao outro, colaboram para formar uma fé na fatalidade mais tenaz e angustiante do que todas as anteriores. (...) Sob todas estas formas e outras mais o que significa é que o homem está ligado a um devir inevitável contra o qual ele não lutaria senão em seu delírio. (...) É uma loucura imaginar a liberdade; não se tem senão a escolha entre uma escravidão voluntária ou uma escravidão desesperada e rebelde. (...) O fundamento que efetivamente todas elas têm, é a obsessão pelo decurso das coisas, isto é a causalidade ilimitada. O dogma do decurso progressivo é a abdicação do homem face ao crescimento do mundo do Isso. Assim, o nome do destino será mal empregado; assim atribuir-se a ele o nome destino será um erro, pois o destino não é uma campânula voltada sobre o mundo dos homens; ninguém o encontra senão aquele que parte de sua liberdade. O dogma do decurso inelutável das coisas não deixa, porém, lugar à liberdade, nem para a sua revelação mais concreta: a conversão* ”


O ARBITRÁRIO E A ARBITRARIEDADE
Para o homem que crê no absolutismo do mundo e da vida coisificados, no absolutismo do mundo do Isso; para o homem em quem enfraqueceu-se a crença na relação, no dialógico, e que crê no decurso progressivo e inalterável das coisas; para o que crê na fatalidade, e abdica de seu poder de relação, resta apenas a possibilidade da vida no arbitrário, e a partir da arbitrariedade. Não é a possibilidade imprevisível, intensa, múltipla e incontrolada da relação que vivifica, anima e transforma a sua vida e a sua realidade, mas a arbitrariedade desenvolvida e hipertrofiada. Buber comenta:

“Assim como liberdade e destino estão interligados, assim também o estão o arbitrário e a fatalidade. Porém liberdade e destino são comprometidos mutuamente para instaurarem juntos o sentido; o arbitrário e a fatalidade, fantasma da alma e pesadelo do mundo, toleram-se vivendo um ao lado do outro, mas esquivando-se, sem ligação e sem atrito, no absurdo, até que, em determinado momento, os olhares distanciados se reencontram e irrompe deles a confissão de mútua perdição. Quanta espiritualidade eloqüente e engenhosa é dispensada, hoje, senão para impedir ao menos para dissimular este fato! ”
“O homem que vive no arbitrário não crê e não se oferece ao encontro. Ele desconhece o vínculo; ele só conhece o mundo febril do ‘lá fora’ e seu prazer febril do qual ele sabe se servir. (...) Na verdade, ele não tem um destino mas somente um ser-determinado pelas coisas e pelos instintos, e isto é realizado com um sentimento de independência que é justamente o arbitrário. Ele não tem o grande querer, este é substituído pelo arbitrário. ele é totalmente inapto à oferta ainda que possa vir a falar dela; tu o reconheces pelo fato de ele nunca se tornar concreto. Ele intervém, constantemente e sempre, com a finalidade de ‘deixar que as coisas aconteçam’. Como se poderia, te diz ele, deixar de auxiliar o destino, deixar de empregar os meios acessíveis exigidos para esse fim? ”
“O homem arbitrário, incrédulo até a medula, não pode perceber senão incredulidade e arbitrário, escolha de fins e invenção de meios. O seu mundo é privado de oferta e graça, de encontro e de presença, entravado nos fins e nos meios. Este mundo não pode ser diferente, o seu nome é fatalidade. Assim, em sua auto-suficiência Ele é engolfado simples e inextrincavelmente pelo irreal e ele sabe disso sempre que sobre si se concentra e é por isso mesmo que ele empenha o melhor de sua espiritualidade para impedir ou, ao menos, ocultar esta lembrança.
Mas se a lembrança de sua decadência, de seu Eu inatural e de seu Eu atual, permitir alcançar a raiz profunda que o homem chama desespero e de onde brotam a autodestruição e a regeneração, isto já seria o início da conversão. ”


O EU EGÓTICO, COISIFICADO, DO RELACIONAMENTO EU-ISSO.

Desde o início, Buber enfatiza a diferença entre o Eu da relação Eu-Tu e o Eu do relacionamento Eu-Isso.

“O mundo é duplo para o homem segundo a dualidade de sua atitude.
A atitude do homem é dupla de acordo com a dualidade das palavras-princípio que ele pode proferir.
As palavras-princípio não são vocábulos isolados mas pares de vocábulos.
Uma palavra-princípio é o par EU-TU. A outra é o par EU-ISSO ...
Deste modo, o EU do homem é também duplo.
Pois, o EU da palavra-princípio EU-TU é diferente daquele da palavra-princípio EU-ISSO. ”

O Eu codificado, abandonado ao mundo e à vida do Isso, cristaliza-se como tal, como Eu egótico. Toma consciência de si como sujeito de experiência e de utilização.
“O egótico aparece na medida em que se distingue de outros egóticos (...)
... é a forma espiritual da diferenciação natural (...)
A finalidade da separação é o experienciar e o utilizar, cuja finalidade é, por sua vez, ‘a vida’, isto é, o contínuo morrer no decurso da vida humana.
(...) O egótico toma consciência de si como um ente-que-é-assim e não-de-outro-modo. (...) O egótico diz: eu sou assim. (...) Conhece-te a ti mesmo para o egótico (significa) conhece o teu modo de ser. Na medida em que o egótico se afasta dos outros, ele se distancia do Ser.
(...) o egótico se delicia com o seu modo-de-ser específico que ele imaginou ser o seu. Pois, para ele, conhecer-se significa fundamentalmente sobretudo estabelecer uma manifestação efetiva de si e que seja capaz de iludí-lo cada vez mais profundamente; e pela contemplação e veneração desta manifestação procura uma aparência de conhecimento de seu próprio modo de ser, enquanto que o seu verdadeiro conhecimento poderia levar ao suicídio ou à regeneração.
(...) o egótico ocupa-se do ‘meu’: minha espécie, minha raça, meu agir, meu gênio.
O egótico não só não participa como também não conquista atualidade alguma. Ele se contrapõe ao outro e procura, pela experiência e pela utilização, apoderar-se do máximo que lhe é possível. Tal é a sua dinâmica: o pôr-se à parte e a tomada de posse; ambas as operações se passam no Isso, no que não é atual. O sujeito, tal como ele se reconhece, pode apoderar-se de tudo quanto queira, que daí ele não obterá substância alguma, ele permanece como ponto, funcional, o experimentador, o utilizador, e nada mais. Todo o seu modo de ser múltiplo ou a sua ambiciosa ‘individualidade’ não podem lhe proporcionar substância alguma. ”

A seguir Buber esclarece:

“Não há duas espécies de homem; há, todavia, dois pólos do humano.
Homem algum é puramente pessoa, e nenhum é puramente egótico; nenhum é inteiramente atual e nenhum totalmente carente de atualidade. Cada um vive no seio de um duplo Eu. Há homens entretanto, cuja dimensão de pessoa é tão determinante que se podem chamar de pessoas, e outras cuja dimensão de egotismo é tão preponderante que se pode atribuir-lhes o nome de egótico. Entre aqueles e estes se desenrola a verdadeira história.
Quanto mais o homem e a humanidade são dominados pelo egótico, mais profundamente o eu é atirado na inatualidade. Nestas épocas a pessoa leva, no homem, na humanidade, uma existência subterrânea e velada e, de algum modo, ilegítima -- até o momento em que ela será chamada.”

Anteriormente , Buber discute como o Eu pode perder a sua atualidade. Argumentando como um interlocutor, ele questiona:

“Compreende-se que o mundo do Isso abandonado a si mesmo -- isto é, privado do contato do tornar-se Tu, aliena-se (...); como é possível, no entanto, que, como dizes, que o Eu do homem perca s sua atualidade? Quer ele viva na relação ou fora dela, o Eu garante-se a si mesmo na sua consciência de si (...).”

E o próprio Buber responde à argumentação:

“A forma linguística não prova nada; muitos Tu proferidos são, fundamentalmente, Isso, ao qual se diz Tu, somente por hábito ou sem pensar. E muitos Isso expressos significam, no fundo, um Tu cuja presença se guarda num estado distante, no fundo de seu ser, uma lembrança; assim em inúmeros casos o Eu é apenas um pronome indispensável, apenas uma abreviação necessária de “este aqui que fala”. Mas e a consciência de si? Quando numa frase se emprega o verdadeiro Tu da relação e, em outra, o Isso de uma experiência, e quando em ambos os casos é o Eu que verdadeiramente se tem em mente, é do mesmo eu de cuja consciência se fala em ambos os casos?”

Buber prossegue para mostrar que não, explicitando as distinções entre o Eu egótico e o Eu da relação Eu-Tu.




3. ATUALIDADE, DECISÃO, LIBERDADE/DESTINO, CONVERSÃO, SUBJETIVIDADE, PESSOA.

A causalidade -- fator preponderante no mundo do Isso, motor da fatalidade e do decurso, quando este mundo do Isso perde a possibilidade de atualização da relação EU-TU -- não vigora, todavia, na esfera da relação.
Pode estar livre da causalidade o homem que, exercendo a potencialidade de seu ser, pode abrir-se e entregar-se à possibilidade da atualidade da relação. A esfera da relação pode garantir a liberdade do homem. Dela pode germinar e emergir a decisão que lhe permite reintegrar-se de modo ativo, criativo e transformador no mecanicismo da causalidade do mundo e da vida coisificados.
“O reino absoluto da causalidade no mundo do Isso, embora de importância fundamental para a ordenação científica da natureza, não aflige o homem que não está limitado ao mundo do Isso e que pode sempre evadir-se para o mundo da relação. Aí o Eu e o Tu se defrontam um com o outro livremente, numa ação recíproca que não está ligada a nenhuma causalidade e não possui dela o menor matiz; aqui o homem encontra a garantia da liberdade de seu ser e do Ser. Somente aquele que conhece a relação e a presença do Tu, está apto a tomar uma decisão. Aquele que toma uma decisão é livre pois se apresenta diante da Face. ”

E a seguir:
“A causalidade não oprime o homem ao qual é garantida a liberdade. Ele sabe que sua vida mortal é, por sua própria essência, uma oscilação entre o Tu e o Isso, e ele percebe o sentido desta oscilação. Basta-lhe saber que pode, a todo momento, ultrapassar o umbral do santuário, onde ele não poderia permanecer. E mais ainda: a obrigação de deixá-lo logo depois incessantemente, lhe está intimamente ligada ao sentido e ao destino desta vida. (...) O que aqui se chama necessidade não o apavora, pois, lá no santuário ele conheceu a verdadeira, isto é, o destino ”

Decisão e relação estão para Buber intimamente associados. É na dimensão da atualidade da relação que o homem pode viver imediata e intensamente a multiplicidade de seus possíveis, engendrar e assumir o seu gesto e ato originais, gestar a sua ação original, única e potente, e determinar o acontecimento, organizando e dinamizando, com a originalidade de seu ser e de seu ato, a configuração de seus possíveis.
Sobre o processo da decisão, na duração do evento da atualidade da relação, Buber coloca:

“Eis aqui toda a substância ígnea de minha capacidade de vontade em um formidável turbilhão, todo o meu possível girando como um mundo em formação, como uma massa confusa e indissolúvel, eis os olhares sedutores das potencialidades flamejando de todas as partes; o universo como tentação, e eu nascido em um instante, as duas mãos imersas numa fornalha para apanhar o que aí se esconde e me procura: meu ato. Pronto! eu o tenho. E logo a ameaça do abismo é proscrita, a multiplicidade deixa de fazer valer a igualdade cintilante de sua exigência; não existem mais que dois na simultaneidade, o outro e o um, a ilusão e a missão. Só então, porém, começa a minha atualização. Pois a decisão não consiste em atualizar o um e deixar o outro estendido como massa extinta que, camada por camada, aviltaria a minha alma. Entretanto, somente aquele que orienta, no fazer do Um a força do Outro, aquele que deixa entrar na atualização do escolhido a paixão intacta do que foi repudiado, somente aquele que ‘serve a Deus com o mau instinto’ se decide e decide o acontecimento. ”

Decisão e liberdade conjugam-se na concepção que Buber faz do destino. De modo que ele desenvolve uma concepção de destino na qual estão necessariamente implicados a decisão e a liberdade.

“O que aqui se chama de necessidade não o (ao homem ao qual é garantida a liberdade) apavora, pois (...) ele conheceu a verdadeira, isto é, o destino.
Destino e liberdade juraram fidelidade mútua. Somente o homem que atualiza a liberdade encontra o destino. Quando eu descubro a ação que me requer, é aí, nesse movimento de minha liberdade, que se me revela o mistério. Mas o mistério se revela a mim não só quando não posso realizar esta ação como eu pretendia, mas também na própria resistência. Aquele que esquece de toda a causalidade e toma uma decisão do fundo de seu ser, aquele que se despoja dos bens e da vestimenta para se apresentar despido diante da face, a este homem livre, o destino aparece como réplica de sua liberdade. Ele não é o seu limite, mas o seu complemento; liberdade e destino unem-se mutuamente para dar sentido; e neste sentido o destino, até há pouco olhar severo, suaviza-se como se fosse a própria graça.
Não, o homem portador de centelha que retorna ao mundo do Isso não é oprimido pela necessidade causal. E, em épocas em que a vida é sã, a confiança se propaga a todo o povo através de homens de espírito (...): ”

Quando das épocas mórbidas, Buber observa:

“... acontece que o mundo do Isso não sendo mais penetrado e fecundado pelos eflúvios vivificantes do mundo do Tu, não passando de algo isolado e rígido, fantasma surgido do pântano, oprime o homem. Nele o homem, contentando-se com um mundo de objetos que não lhe podem mais tornar-se presença, sucumbe. Então, a causalidade fugaz intensifica-se, até tornar-se uma fatalidade opressora e esmagadora. ”

Para Buber, não obstante, a conversão permanece sempre possível.
A conversão é para Buber o engajamento do homem total na concretude de sua existência (Von Zuben p.163). A conversão pode ser a abertura que possibilita a emergência da potência e possibilidade plástica da relação dialógica. Não obstante a cristalização em causalidade ilimitada, decurso progressivo e inalterável, e fatalidade, próprios do mundo em que se enfraqueceu a possibilidade da relação:

“O desejo, elan impetuoso de redenção, permanece, em última análise, a despeito de numerosas tentativas, insatisfeito, até que o acalme aquele que ensina a escapar do ciclo dos renascimentos ou alguém que salve as almas, subjugadas por poderes terrenos, levando-as para a liberdade dos filhos de Deus. Tal obra se realiza quando um novo fenômeno de relação se torna substância, quando uma nova resposta é dada pelo homem a seu Tu, acontecimento que determina o destino. ”

Buber aponta a parcialidade e a falsidade do dogma do decurso progressivo e inalterável das coisas, a falsidade da crença na fatalidade:

“O dogma do decurso progressivo é a abdicação do homem face ao crescimento do mundo do Isso. (...) Este dogma desconhece o homem que pode vencer a luta universal pela conversão; aquele que rompe, pela conversão, as amarras dos impulsos de utilização; aquele que se liberta pela conversão do fascínio de sua classe; aquele que, mediante a conversão, pode revolver, rejuvenescer, transformar quadros históricos os mais seguros. O dogma do decurso não te deixa no tabuleiro senão uma opção: observares as regras ou te retirares; aquele porém que realiza a conversão derruba todas as peças. ”

E arremata, brilhante:
“A única coisa que pode vir a ser fatal ao homem, é crer na fatalidade, pois esta crença impede o movimento da conversão.
A crença na fatalidade é falsa desde o princípio. Todo o esquema do decurso consiste somente em ordenar como história o nada-mais-senão-passado, os acontecimentos isolados do mundo, a objetividade. A presença do Tu, o que nasce do vínculo são inacessíveis a esta concepção, que ignora a realidade do espírito; este esquema não apresenta valor algum para o espírito. A profecia baseada na objetividade tem valor apenas para quem ignora a presença. Aquele que é subjugado pelo mundo do Isso é obrigado a ver no decurso inalterável uma verdade que esclarece a confusão. Na verdade tal dogma deixa subjugar-se mais profundamente ao mundo do Isso. Porém, o mundo do Tu não é fechado. Aquele que na unidade do seu ser se dirige a ele, conhecerá profundamente a liberdade. E tornar-se livre significa libertar-se da crença na servidão. ”

Buber tematiza a relação entre a arbitrariedade e a fatalidade. A arbitrariedade que decorre de um Eu carente de atualidade, e cuja possibilidade de relação encontra-se enfraquecida. Ele inicia, de um modo interessante, falando da possibilidade de submissão do mundo do Isso por aquele que o conhece em sua natureza:

“Assim como é possível dominar um íncubo chamando-o pelo seu verdadeiro nome, assim também o mundo do Isso, que, ainda há pouco esmagava com sua força espantosa a fraca força do homem, é constrangido a submeter-se àquele que o conhece em seu ser... ”
A seguir ele contrapõe:
“Mas como poderia ser capaz de interpelar o íncubo pelo seu nome, aquele que, no seu íntimo leva um fantasma, isto é, o Eu carente de atualidade? Como a força de relação sepultada pode ressurgir em um ente cujos escombros são permanentemente pisoteados por um fantasma vigoroso?
Como poderia recolher-se um ser que está constantemente perseguido em um campo vazio pela procura da subjetividade perdida? Como conheceria profundamente a liberdade aquele que vive no arbitrário. ”

E, reiterando as palavras de Buber:

“Assim como liberdade e destino estão interligados, assim também o estão o arbitrário e a fatalidade. Porém liberdade e destino são comprometidos mutuamente para instaurarem juntos o sentido; o arbitrário e a fatalidade, fantasma da alma e pesadelo do mundo, toleram-se vivendo um ao lado do outro, mas esquivando-se, sem ligação e sem atrito, no absurdo, até que, em determinado momento, os olhares distanciados se reencontram e irrompe deles a confissão de mútua perdição. ”

“O homem livre é aquele cujo querer é isento de arbitrário. Ele crê na atualidade, isto é, ele acredita no vínculo real que une a dualidade real do Eu e do Tu crê no destino e também que ele tem necessidade dele; ele não o conduz em inteiras, mas o espera; o homem deve ir ao seu encontro mas não sabe ainda onde ele está. O homem livre deve ir a ele com todo o seu ser, disso ele sabe. Não acontecerá aquilo que a sua resolução imagina, mas o que aconteceu, não acontecerá senão na medida em que ele resolver querer aquilo que ele pode querer. ser-lhe-á necessário sacrificar aquele pequeno querer, escravo, regido pelas coisas e pelos instintos, em favor do grande querer que se afasta do “ser determinado” para ir ao destino. Ele não intervém mais, mas nem por isso permite que aconteça pura e simplesmente. Ele espreita aquilo que por si mesmo se desenvolve, o caminho do ser no mundo; não para se deixar levar por ele, mas para atualizá-lo como ele deseja ser atualizado pelo homem de quem ele necessita, por meio do espírito humano e do ato humano, com a vida do homem e com a morte do homem. Ele crê, disse eu, o que equivale dizer: ele se oferece ao encontro. ”

Diferentemente do homem que vive no arbitrário,

“O homem livre não tem, aqui, uma finalidade e, lá, os meios para obtê-lo; ele possui somente um objetivo e sempre um: a resolução de ir de encontro ao seu destino. Tomada essa resolução pode lhe acontecer de, às vezes renová-la a cada etapa decisiva do caminho; mas deixará de acreditar na sua própria vida antes de crer que a resolução de seu grande querer é insuficiente e que deve mantê-la por todos os meios. Ele crê; ele se oferece ao encontro. ”


EGÓTICO E PESSOA
Uma contraposição entre as concepções do egótico e da pessoa, parte da qual já mencionamos acima, quando tratamos do egótico, é uma dimensão fundamental da concepção buberiana:

“O Eu da palavra-princípio EU-TU é diferente do Eu da palavra-princípio Eu-Isso.
O Eu da palavra-princípio Eu-Isso aparece como egótico e toma consciência de si como sujeito (de experiência e de utilização).
O Eu da palavra-princípio Eu-Tu aparece como pessoa e se conscientiza como subjetividade, (sem genitivo dela dependente).
O egótico aparece na medida em que se distingue de outros egóticos.
A pessoa aparece no momento em que entra em relação com outras pessoas.
O primeiro é a forma espiritual da diferenciação natural, a segunda é a forma espiritual do vínculo natural.
A finalidade da separação é o experienciar e o utilizar, cuja finalidade é, por sua vez, “a vida”, isto é, o contínuo morrer no decurso da vida humana.
A finalidade da relação é o seu próprio ser, ou seja, o contato com o Tu. Pois, no contato com cada Tu, toca-nos um sopro da vida eterna.
Quem está na relação participa de uma atualidade*, quer dizer, de um ser que não está unicamente nele nem unicamente fora dele. Toda atualidade é um agir do qual eu participo sem poder dele me apropriar. Onde não há participação não há atualidade. onde há apropriação de si não há atualidade. A participação é tanto mais perfeita, quanto o contato do Tu é mais imediato.
O eu é atual através de sua participação na atualidade. ele se torna mais atual quanto mais completa é a participação.
Mas o eu que se separa do evento de relação em direção da separação, consciente desta separação, não perde a sua atualidade. A participação permanece nele, conservada com potencialidade viva; ou então, em outros termos usados quando se trata da mais elevada relação e que pode ser aplicada a todas as relações, ‘a semente permanece nele’. É este o domínio da subjetividade, onde o Eu toma consciência tanto de seu vínculo como de sua separação. A autêntica subjetividade só pode ser compreendida de um modo dinâmico, como vibração de um Eu no seio de sua verdade solitária. É aqui, também, o lugar onde irrompe e cresce o desejo de uma relação cada vez mais elevada e absoluta, o desejo de uma participação total com o Ser. Na subjetividade amadurece a substância espiritual da pessoa.
A pessoa toma consciência de si como participante do ser, como um ser-com, como um ente. O egótico toma consciência de si como um-ente-que-é-assim e não-de-outro-modo. A pessoa diz: ‘Eu sou’, o egótico diz: ‘eu sou assim’. ‘Conhece-te a ti mesmo’ para a pessoa significa: conhece-te como ser; para o egótico: conhece o teu modo de ser. Na medida em que o egótico se afasta dos outros ele se distancia do Ser.
Com isso não se quer dizer que a pessoa ‘renuncie’ ao seu modo de ser específico, mas somente isso: este não é somente o seu ponto de vista, mas a forma necessária e significativa de ser. Ao contrário, o egótico se delicia com o seu modo-de-ser específico que ele imaginou ser o seu. Pois, para ele conhecer-se significa fundamentalmente estabelecer uma manifestação efetiva de si e que seja capaz de iludí-lo cada vez mais profundamente; e pela contemplação e veneração desta manifestação procura uma aparência de conhecimento de seu próprio modo-de-ser, enquanto que o seu verdadeiro conhecimento poderia levar ao suicídio ou à regeneração.
A pessoa contempla-se o seu si-mesmo, enquanto que o egótico ocupa-se com o seu ‘meu’: minha espécie, minha raça, meu agir, meu gênio.
O egótico não só não participa como também não conquista atualidade alguma. Ele se contrapõe ao outro e procura, pela experiência e pela utilização, apoderar-se do máximo que lhe é possível. Tal é a sua dinâmica: o pôr-se à parte e a tomada de posse; ambas as operações se passam no Isso, no que não é atual. O sujeito, tal como ele se reconhece, pode apoderar-se de tudo quanto queira, que daí não obterá substância alguma, ele permanece como o ponto funcional, o experimentador, o utilizador e nada mais. Todo o seu modo de ser múltiplo ou sua ambiciosa ‘individualidade’ não podem lhe proporcionar substância alguma. ”

Buber conclui sobre a sua concepção de pessoa,

“O homem é tanto mais uma pessoa quanto mais intenso é o eu da palavra-princípio Eu-Tu, na dualidade humana de seu Eu. ”

E constatando, comenta,
“Que distante é o Eu do egotista! ”

A seguir, Buber comenta, o dizer Eu pessoal de algumas pessoas históricas. Sócrates, Goethe e Jesus:

“... como soa de um modo autêntico e belo , o eu tão belo e enérgico de Sócrates! É o Eu do diálogo infinito (...). Este Eu vivia na relação com os homens, relação que se encontrava no diálogo. Ele acreditava na atualidade dos homens e ia em sua direção. ”

“Que som belo e autêntico tem o Eu de Goethe! É o eu de uma intimidade pura com a natureza. ”

“E, para apresentar, antecipadamente, uma imagem do reino da relação absoluta, quão poderoso é o dizer-Eu de Jesus, como um verdadeiro poder de dominação, e quão legítimo como uma evidência! Afinal, ele é o Eu da relação absoluta, na qual o homem atribui a seu Tu o nome de Pai, de tal modo que, ele mesmo não é senão o Filho, nada mais que filho. Quando ele profere Eu, ele só pode ter em mente o Eu da palavra-princípio sagrada que se tornou absoluta para ele. Se, por acaso o isolamento o toca, a ligação é mais forte, e é somente do seio desta ligação, que ela fala aos outros. ”

Por fim, comentando a personalidade de Napoleão (certamente por que escrevia no início do século, senão teria exemplos mais recentes e terríveis), Buber fala de um terceiro tipo de modo de dizer Eu, que não é nem o do egótico nem o da pessoa, e ao qual ele chama de Tu demoníaco:
“... aquele que não responde, aquele que responde ao Tu com um Isso, aquele que na dimensão pessoal responde ficticiamente: aquele que somente responde na sua esfera, no âmbito de sua causa e somente por seus atos. Tal é o limite histórico e elementar onde a palavra-princípio da ligação perde a sua realidade, seu caráter de reciprocidade: é o Tu demoníaco, para o qual nenhum ente pode tornar-se um Tu.
Este terceiro tipo de eu, ao lado da pessoa e do egótico, que não é nem homem livre nem homem arbitrário, nem se situa entre eles, existe postado de uma maneira fatal, nas grandes épocas do destino, todos se entusiasmam ardentemente por ele, enquanto que ele mesmo permanece em um fogo gélido; aquele ao qual milhares de relações se dirigem, mas da qual nenhuma provém; ele não participa de nenhuma atualidade, mas ele é como uma atualidade da qual todos participam intensamente. ”

Buber conceitua então e define o que ele chama de auto contradição:

“Quando o homem não põe à prova, no mundo, o a prior da relação, efetivando e atualizando o Tu inato no Tu que ele encontra, então ele se introverte. Ele se manifesta ao contato com o Eu não natural, impossível objeto, isto é, ele se desvela ali onde não há lugar para a revelação. Assim instaura-se o confronto consigo mesmo que não pode ser relação, presença, reciprocidade fecunda mas somente autocontradição. O homem pode tentar interpretá-la como uma relação, por exemplo, uma relação religiosa, para escapar do horror de ser seu espectro; ele deverá sem cessar descobrir a falsidade desta interpretação. Aqui se situa o limite da vida. Aqui, algo irrealizado refugia-se numa aparência demente de realização; por ora ele tateia, de um lado para o outro, nos labirintos onde se perde cada vez mais. ”

Mas aponta para uma alternativa:

“Às vezes, quando o homem estremece na alienação entre o Eu e o mundo, ocorre-lhe o pensamento de que algo deve ser feito. Como quando repousas, na pior hora do meio da noite, atormentado por um pesadelo, estando acordado, quando os baluartes desmoronam-se e os abismos vociferam e percebes, no fundo do teu ser, que a vida subsiste e que deves voltar ao seu encalço; mas como? Assim é o homem nos instantes de recordação, horrorizado, pensativo, desorientado. E talvez conheça ainda, no seu âmago profundo, a direção com o conhecimento não amado da profundeza, a autêntica direção que pela oferta, leva até a conversão. ”

A conversão, para Buber, é o engajamento profundo e total, o mergulho profundo, ativo e durador, do homem na concretude de sua existência , caminho natural e sempre latentemente disponível para a vivência intensa e potente das possibilidades da existência.
Para a psicologia e para a psicoterapia, em particular para as chamadas fenomenológico existenciais, as perspectivas de Buber configuram-se sempre como interessantes e profundas possibilidades de aprendizagem e de esclarecimento.