domingo, 9 de agosto de 2009

Capítulo 1. AS CONDIÇÕES FACILITADORAS BÁSICAS COMO PRINCÍPIOS DE MÉTODO FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL.: I. CONSIDERAÇÃO POSITIVA INCONDICIONAL.

Capítulo 1
AS CONDIÇÕES FACILITADORAS BÁSICAS COMO PRINCÍPIOS DE MÉTODO FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL.:
I. CONSIDERAÇÃO POSITIVA INCONDICIONAL.



Se tudo que uma pessoa exprime (verbalmente ou não verbalmente, direta ou indiretamente) sobre si mesmo, me parece igualmente digno de respeito ou de aceitação, isto é, se não desaprovo nem deprecio nenhum elemento expresso dessa forma, experimento em relação a esta pessoa uma atitude de consideração positiva incondicional.
(Carl Rogers/ G. Marian Kinget)




A fenomenologia significou um momento particularmente marcante no desdobramento do pensamento da Civilização Ocidental. Um momento em que buscou-se uma relativização dos juízos, do conceitual, do teórico, do abstrato, e da abstração, privilegiando-se a fonte de onde eles emergem, a experiência viva, pré reflexiva, pré conceitual, pré teorizaste: o encarnado, o efetiva e pontualmente vivido.
Constituiu-se assim a fenomenologia como uma ontologia, como uma epistemologia, como uma filosofia, como uma perspectiva de ciência, como uma atitude fenomenológica, que busca partir destes níveis originários da experiência e do devir, o nível da intuição originária da vivência de consciência.
A fenomenologia foi aí, já, uma revolução: ...Não só relativizar, mas subalternizar a consciência reflexiva, os juízos, o teórico, o conceitual, numa cultura que, desde Sócrates, instalava-os no ápice dos valores e dos critérios do conhecimento... Eleger a intuição originária da vivência de consciência como o critério por excelência do conhecimento e da existência: o nível do conhecimento (vivencial) anterior a qualquer forma de conhecimento (reflexivo).
Foi uma modificação completa do ponto de referência. Uma revolução de mentalidade no âmbito da socrática Civilização Ocidental.
À consciência pontual e pré reflexivamente vivida, em seus níveis mais originários, foi restituída a sua importância e valor, no processo de constituição da existência e do conhecimento humanos: o seu lugar de raiz de todas as coisas, e o seu lugar, nada menos que, de condição de aparição do mundo, raiz do mundo... Mundo a ela originária e indissociavelmente correlativo, anteriormente a qualquer possibilidade de cisão. A preconização de uma atitude fenomenológica, que buscasse uma compreensão (e não uma explicação) do mundo, e da existência -- em sua globalidade, detalhes e fragmentos -- , a partir, específica e particularmente, de sua vivência. Uma suspensão da crença no valor dos juízos, conceitos e teorias a respeito do mundo e da existência, para enfatizar a importância fundamental de sua vivência, na intuição originária da vivência de consciência.

“O mundo não tem existência, o mundo é fenômeno...”

Tudo isto representou já uma revolucionária mudança de critérios e de pontos de vista, de atitudes e de valores.
Mas para a fenomenologia, como para o humano, de um modo geral, resta ainda, pelo menos, uma questão crucial: ...a consciência enquanto tal não é única, não existe isoladamente no mundo. Para a consciência há sempre a crucial questão da outra consciência, do outro, com os quais a consciência não apenas relaciona-se dialogicamente, mas imbrica-se dialógica e necessariamente, num processo de mútua constituição e reconstituição.
Rapidamente, a consciência constata que não se trata, apenas, de viver num mundo de coisas que têm sentido. Mas de viver num mundo com outros. Outros que são um eu para si próprios. De outros que constituem a sua própria unidade, de outros que são focos autônomos de produção de seu próprio sentido (Husserl).
Ou, como observa Lyotard:

“A alteridade do outro distingue-se da transcendência simples da coisa pelo facto de o outro ser para si próprio um Eu e de a sua unidade não estar na minha percepção, mas nele próprio; por outras palavras, o outro é um Eu puro que de nada carece para existir, é uma existência absoluta e um ponto de partida radical para si mesmo, como eu o sou para mim. A questão transforma-se então em: como é possível um sujeito constituinte (o outro) ‘para’ um sujeito constituinte (eu)?”.

É um segredo da arte do humano. Ser e viver com outros.
Relação com outros que pode ser, e é, a fonte de ameaça e de nossa destruição. Relação com outros que é a fonte de nossa criação e realização.
Tamanha é a importância do significado da possibilidade presença do outro que interessa-nos radicalmente respeitá-lo em sua outridade, e interagir com ele em sua particularidade e singularidade.
Não posso abrir mão da afirmação de meu eu em devir, na relação com o outro. Mas interessa-me a relação com a sua diferença e particularidade próprias, a outridade do outro. Interessa-me respeitar a sua particularidade e a sua diferença próprias, e com elas interagir.
Buber colocaria isto de uma forma primorosa:

“Este ser humano é outro, essencialmente outro do que eu, e é esta sua alteridade que eu tenho em mente, porque é ele que eu tenho em mente; eu a confirmo, eu quero que ele seja outro do que eu, porque eu quero o seu modo específico de ser.

Não é por questão de alguma forma de altruísmo, ou por algum princípio moral. É que “O eu se cria na relação com o tu”. Não existe eu que se constitua que não seja dialogicamente na relação com o Tu. De modo que a estratégia existencial fundamental do crescimento é a relação com o diferente, com o outro -- pessoal, impessoal, individual, coletivo, situacional, humano, não humano...
É do meu interesse dialogicamente abrir-me e interagir com a diferença do tu. É a forma privilegiada do processo de minha auto constituição.


A psicoterapia mergulhou de cabeça na revolução que configuraram a fenomenologia e a sua conotação existencial, constituindo linhas especificamente fenomenológico existenciais de psicoterapia. Com isto, constituiu-se uma revolução própria e particular no seu campo específico, e, porque não dizê-lo, no âmbito das relações sociais na cultura ocidental. Revolução potencializada e potencializante inclusive da própria emergência e desdobramentos da fenomenologia e do existencialismo.
Isto significou, de imediato e preliminarmente, no encontro e confronto com o cliente, a assunção do ponto de vista epistemológico da fenomenologia, e a eleição do ponto de vista fenomenal como critério superior de conhecimento e de vida. Ou seja, alternativamente ao conceitual, ao reflexivo, ao teórico, a assunção do ponto de vista da intuição originária da vivência de consciência, do vivido, do pré reflexivo, como critério superior do conhecimento e de orientação e avaliação da vida.
Isto marca uma revolução histórica, epistemológica, conceitual, técnica, política, no âmbito dos trabalhos de psicoterapia, de saúde mental e de manejo das relações sociais. Revolução que ainda está por desdobrar-se, e produzir os seus melhores efeitos. Marca uma revolução, sobretudo, do ponto de vista ético. Na medida em que reconhece-se inquestionavelmente o direito do outro a sua própria subjetividade fenomenal, e ao seu exercício.
Não se trata apenas do direito do outro a sua própria consciência, mas do direito à validade inquestionável da fonte vivencial e pré reflexiva de sua consciência, da intuição originária de sua vivência de consciência como raiz do mundo para ele.
De modo que, com relação à subjetividade do cliente (tantas vezes massacrada em sua vida cotidiana, e freqüentemente, em particular, pelo próprio poder institucional do profissional), com relação ao seu (do cliente) ponto de vista fenomenal, desenvolve-se um respeito radical, de quem, enquanto psicoterapeuta, se auto concebe como humano, em primeiro lugar -- e não como um técnico --, e está visceralmente interessado na humanidade original e única de seu parceiro de relação -- mesmo que seja esta uma relação emoldurada pelo vínculo profissional. Respeito ao cliente não apenas de um ponto de vista abstrato, teórico, conceitual, egótica e narcísicamente projetivo, mas do ponto de vista fenomenal e pontualmente vivido dele próprio, cliente, pessoa, ser humano, consciente e autônomo, afetivo, em crise existencial mais ou menos aguda, e em devir.
Por outro lado, para além do conhecimento, as psicoterapias fenomenológico existenciais assumiram a perspectiva existencialista da própria afirmação do vivido, e do valor da criatividade existencial, emergente na afirmação deste vivido. A perspectiva da afirmação da existência, como postura ética, e como estratégia, digamos, terapêutica, ou de crescimento humano, existencial.
Pensadas no que concerne ao cliente, estas premissas fenomenológico existenciais da psicoterapia convergiram naturalmente, assim, num princípio de respeito radical à sua diferença enquanto outro, consciente, reflexiva e, sobretudo, pré reflexivamente. Mais do que respeito, convergiram no interesse por sua diferença particular, por sua outridade própria. Um interesse por uma compreensão e confirmação da pessoa dele, naquilo que ele pontualmente se percebe, vivência e comunica como sendo ele próprio, no modo como ele compreende e vivência as questões, pessoas e vínculos significativos de sua atualidade existencial.
Posso colocar-me em relação com o cliente. Com a sua comunicação voluntária ou involuntária. Mas, tal como a minha, a sua consciência constitui-se autonomamente. E, é, fenomenologicamente, a raiz do mundo para ele. De modo que, se posso, e interesso-me, por colocar-me dialogicamente em relação ativa com ele, a partir da singularidade pontual de mim mesmo, não me concerne avaliar ou tentar condicionar o ponto de vista fenomenal de sua consciência com relação a ele próprio, ao seu mundo, a seus vínculos, a suas questões existenciais. Este ponto de vista existe necessariamente, e é imanente à existência de sua pessoa na relação com o mundo que lhe diz respeito. É a raiz do mundo para ele.
De modo que o que interessa a um terapeuta fenomenológico existencial é que o cliente possa afirmar a afirmação que já é este seu ponto de vista fenomenal. É o respeito incondicional por este ponto de vista fenomenal do cliente, por sua experiência, pela sua afirmação.

No pragmático desenvolvimento da terapia centrada na pessoa, cedo percebeu-se que era este respeito incondicional pelo ponto de vista fenomenal do cliente, e por sua afirmação, que se constituía como uma condição fundamental para a criação de um clima terapêutico, de possibilitação de “cura”, e de facilitação de seu crescimento humano.
Uma atitude de Consideração positiva incondicional pela experiência do cliente por parte do terapeuta logo revelou-se como um poderoso fator de constituição de um clima de relação passível de propiciar condições ao cliente para uma progressiva reorganização de seu modo de funcionamento psíquico e comportamental, propiciando-lhe condições para uma reorganização da sua imagem de seu si-mesmo, e uma melhor atenção a sua experiência organísmica, no sentido do desenvolvimento de padrões mais livres de vivência desta sua experiência e de criatividade e potência no âmbito de sua existência. Como pedra de toque, a consideração positiva incondicional cria condições para que o cliente possa afirmar o seu vivido, e progressivamente com ele identificar-se de um modo habitual. De modo que a habitual identificação do cliente com o seu vivido permite-lhe uma potencialização de sua originalidade e de sua criatividade, de suas forças e vontade, na resolução e encaminhamento de suas questões existenciais.
Este conceito, e a prática efetiva de uma consideração positiva incondicional pela experiência do cliente, passou então a constituir-se como elemento fundamental da teoria e da prática da Terapia Centrada na Pessoa, da mesma forma em que passou a ser entendido como um fator fundamental para o desenvolvimento de uma personalidade humana plenamente funcionante. Entendendo-se levar a sua carência regular ao desenvolvimento de um estado de mal funcionamento da personalidade, de desajuste social e desequilíbrio psicológico.
Os praticantes da terapia centrada na pessoa, desenvolveram estudos para verificar hipóteses relativas à consideração positiva. E, como na questão da empatia, há que se reconhecer a Rogers o mérito de ter investido a sua vida profissional na afirmação do valor e da importância da consideração positiva incondicional no âmbito da psicoterapia, da pedagogia e dos trabalhos com grupos e de facilitação das relações humanas em geral.
Infelizmente, à medida em que vai se desenvolvendo na ACP uma pragmático empirização de seu fundamento fenomenológico e existencial -- o que significou uma perda de densidade fenomenológico existencial dialógica em sua concepção, na concepção de seus conceitos, princípios e na sua prática -- há um empobrecimento conceitual e prático da idéia de uma consideração positiva incondicional pela experiência do cliente.
É interessante observar, num primeiro momento, que, ao longo desse processo, o conteúdo fenomenológico existencial dialógico do conceito vai sendo misturado com conteúdos da filosofia dos direitos da pessoa humana. Interessante.
No limite, a pessoa é aceita como um valor em seu direito pessoal de cidadão, a pessoa em si é aceita como um valor.
Evidentemente que isto é uma premissa fundamental da relação com outros seres humanos, conquista das revoluções burguesas da Europa e dos Estados Unidos. Mas a questão de uma consideração positiva incondicional pela pessoa do cliente não pode parar simplesmente por aí.
Não se trata de uma consideração positiva incondicional pelo outro como pessoa abstrata, teórica, que eu projeto egótica e narcísicamente sobre o meu parceiro de relação. Não se trata, também, o que dá mais ou menos no mesmo, de uma consideração positiva pelo outro apreendido e concebido meramente como pessoa empírica e empíricamente comunicante e comunicada.
Trata-se do reconhecimento e confirmação pontual do outro enquanto outro fenomenal, consciente e em devir, diferente e autônomo, dialogicamente em relação comigo. Trata-se de uma consideração positiva incondicional pelos níveis mais informes e frescos de sua consciência com relação a si próprio e ao mundo que lhe diz respeito. Trata-se do reconhecimento do seu direito à diferença e à autonomia, em sua relação pontual comigo, pessoa e instituição, locus de poder. Trata-se em particular do interesse vivencial, não altruísta, de pôr-me em relação dialógica com a sua diferença e autonomia: Trata-se do meu interesse na parceria com ele num processo de constituição de minha atualidade, de meu presente.
Presente que, como diz Buber, só existe na presença. Presença que é a presença do, e relação com o, tu, alteritário, em sua diferença própria e autonomia.
De modo que não se trata, por exemplo de um conceito moral ou altruísta de aceitação do outro. Não se trata de simplesmente reconhecer -- premissa fundamental, mas insuficiente -- o seu direito a ser aceito incondicionalmente como um valor por ser pessoa. Não se trata da aceitação de sua pessoa empírica.
Trata-se, na consideração positiva incondicional pela pessoa e pela experiência do cliente, de uma abertura para a relação com ele em sua outridade própria, e de uma compreensão e consideração positiva, ativa e vivencial, pelo seu ponto de vista fenomenal, como inevitável e irrecusável raiz do mundo para ele. Trata-se de um princípio de método fenomenológico existencial de prática da psicologia e da psicoterapia, que carece de ser entendido de uma perspectiva especificamente fenomenológica e existencial. Do contrário, com a perda da densidade fenomenológica e existencial de sua concepção, a consideração positiva é facilmente confundida com uma incondicional aceitação moral do outro, fácil e rapidamente refutada como impossível. Enquanto que a consideração positiva incondicional constitui-se efetivamente como interesse existencial para quem efetivamente a pratica.
Não custa recordar Fritz Perls: “Mil flores de plástico não farão o deserto florescer.”