domingo, 9 de agosto de 2009

Capítulo 6 FENOMENAÇÃO Psicologia e Psicoterapia Fenomenativa Existencial?

Capítulo 6
FENOMENAÇÃO
Psicologia e Psicoterapia Fenomenativa Existencial?



O importante não é o ‘cogito’ ergo sum, mas o agito ergo sum.
T. Suzuki.

O puro conhecimento é desprovido de instinto.
Nietzsche.

Mil flores de plástico não farão o deserto florescer
F. Perls.

Na atualidade vivida não há unidade do ser. A atualidade é somente ação. Sua força e profundidade são as destas ação. E mais, só há “interior” na medida em que houver ação mútua. A atualidade mais forte e profunda é aquela onde tudo dirige-se à ação...
M Buber.

A ação é o núcleo da realidade.
Fritz Perls.



Psicoterapia e filosofia fazem uma boa parceria.
Não seria correto dizer que a psicoterapia nasce de certas correntes filosóficas. Na verdade, a psicoterapia desenvolve-se a partir de certos filões dos processos culturais, dos quais certamente brotam também as idéias filosóficas a eles relativos.
Assim é com as psicologias e psicoterapias fenomenológico existenciais. Elas nascem, dentre outras influências, como observamos, a partir da recuperação de certas perspectivas da Cultura Grega Pré-Socrática, em meio ao ambiente fortemente socrático do desenvolvimento da Civilização Ocidental.
No âmbito de uma cultura que assume uma negação feroz do corpo em sua espontaneidade, de negação do vivido, dos sentidos, o incremento da presença do dionisíaco pré socrático configurou-se como uma possibilidade de arejamento e efetivamente de cura, num sentido amplo. Esta presença foi, evidentemente, potencializada pela recuperação artístico filosófica que Nietzsche elaborou deste viés cultural dionisíaco, esquecido e subterrâneo, no âmbito moralista da Cultura da Civilização Ocidental.
As idéias e a arte de Nietzsche tiveram uma poderosa influência na intelectualidade alemã e européia do final do século passado e início deste. E quando parte desta intelectualidade emigrou para a América, antes, durante e depois da segunda guerra, carregou consigo e semeou no Novo Mundo a vigorosa influência Nietzscheana.
O mesmo se passou com a fenomenologia. Esta certamente desenvolvida, pelo menos em parte, a partir de tradições místicas do Judaísmo e das Civilizações Orientais.
Migrando do âmbito da medicina, do âmbito de um modelo médico -- processo de migração no qual ainda hoje encontramo-nos envolvidos --, a chamada psicoterapia encontrou-se com as tradições fenomenológica e existencial, seja com o depuramento filosófico particular destas, seja no seio vivo das práticas culturais nas quais elas se constituíam e das quais emergiam. Lidando cotidianamente com questões e crises existenciais ativas e irresolvidas, freqüentemente dramáticas, a psicologia e a psicoterapia descobriram a fenomenologia e o existencialismo como um fecunda e criativa possibilidade de abordagem prática e produtiva dessas crises.
Assim, desde o início, a psicologia e a psicoterapia fenomenológico existencial careceu de firmar na sua prática uma posição fortemente fenomenal e existencialista. Na relação com o cliente, começou a ficar claro, desde cedo, que o que era curativo não era um estudo do psiquismo do cliente, de seu psiquismo ou de sua estrutura de personalidade, ou mesmo um estudo de seu processo fenomenal, mesmo que este estudo fosse operado por ele próprio, cliente. Não era um enfoque técnico, a aplicação de certas técnicas, ou um enfoque moralista e orientador, que poderia ser curativo. O que era, e é, efetivamente curativo na abordagem da psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial é a possibilidade da entrega ativa do cliente ao desdobramento vivo e vívido, ativo, -- diríamos desdobração -- do próprio vivido pré reflexivo, pré conceitual, de sua atualidade existencial, eventualmente crítica. A entrega franca à ativa concretude de sua existência, ao seu devir, o que, em Gestalterapia -- mas na realidade formulação de Carl Rogers -- ficou conhecido como teoria paradoxal da mudança: o cliente não muda terapêuticamente escamoteando o seu estado de ser, vivido, mas é ao assumir e ativamente afirmar, este estado -- em devir -- vívidamente vivido, que ocorre a mudança, que o cliente cresce.
É esta constatação, pragmaticamente desenvolvida, que determinou e determina o fundamento filosófico e o modelo metodológico da abordagem das psicologias e psicoterapias fenomenológico existenciais. Em particular, o seu modelo de concepção da pessoa, de auto concepção do profissional, e de concepção e uso do poder que está social e contingentemente atribuído ao psicoterapeuta e à psicoterapia. Trata-se, de criar no âmbito do espaço psicoterapêutico e de trabalho psicológico, as condições para que a vivência fenomenal pelo cliente do momentum de sua atualidade existencial, e eventualmente de sua crise, possa pontualmente afirmar-se e desdobrar-se, ativamente, segundo os seus vetores próprios. Com toda a alegria, perecimento e sofrimento que isto possa contigencialmente implicar. Mas a partir, sempre, da constatação do valor próprio e intrínseco desta afirmação vivencial, e de que é ela a mais poderosa via para a potencialização da liberdade e da criatividade do cliente e da pessoa, na resolução das questões de sua atualidade existencial e no manejo de sua vida.
De modo que podemos dizer que, desde o início, trabalhamos operando ativamente a inversão da inversão de que Nietzsche falava, quando tratava da relação entre Socráticos e Pré-Socráticos. Para ele, Sócrates -- e na sua esteira toda a tradição da cultura da Civilização Ocidental -- operara uma inversão da perspectiva dos Pré socráticos, ao eleger o abstrato, o ideal, o além mundo, como valores superiores; relegando o corpo, os sentidos, o vivido, os instintos, a terra e a força da terra, a valores inferiores, porque suposta e doutrinariamente estariam vinculados à animalidade humana. Nietzsche propunha, assim, uma inversão da inversão socrática. Ou seja reinstalar o corpo, o vivido, os sentidos no topo da pirâmide de valores, relegando a um plano secundário o abstrato, o teórico, os ultra-mundos. A psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial surgem deste projeto de uma inversão da inversão socrática. De uma reinstalação do corpo, do vivido e dos sentidos, do ativo da vida, como valores em si, como valores primordiais. Ou seja, trata-se de entender o vivido como ativa e benigna afirmação da vida, e de desenvolver valores e atitudes de afirmação da afirmação com que ele já se configura, as bodas de Dionísio e Ariana, de que falava Nietzsche.
No âmbito da psicologia e da psicoterapia, trabalhamos, primordialmente, com o devir vivo do ser no mundo, com a vivência, com o, vivo e vívido vivido, devir do ser do cliente no seu mundo, ativados estes pela(s) crise(s) que o conduzem à prática da psicoterapia. Momentos de querido ou dolorosamente indesejado estalar de velhas estruturas de ser e estar no mundo. Momentos de vivência das dores e sofrimentos, repulsas e seduções de perecimentos vários. Momentos, eventualmente, de ameaça terrível, ou de incontrolável atratividade, do novo que emerge com a lentidão e inexorabilidade do sol de cada manhã. Momentos de medo e excitação. Momentos de trans-form-ações, ora morosas ora desconcertantemente frenéticas.
Tudo está perturbadoramente vivo, em movimento e vulnerável, devir. Em carne viva. Potência plena e informe. Tudo está plasticamente ativado e lábil, e é a própria liberdade e criatividade do cliente, a vontade do seu ser que devém, que poderá dar uma forma, produtiva e rica para ele, a tudo que está em formação. Não existem mapas, não existem cartografias do desejo. Tudo depende de simples e pequenas ousadias, de um espírito existencialmente experimental -- de grandes ousadias, às vezes -- do arriscado sim ao momentum de si mesmo, da aceitação e afirmação do espírito de uma vida que experimenta, que tenta e erra, que pode criar, e cria. Tudo se resolve desta forma ao nível do vivido e da ação, da vívidação do vivido, da afirmação e da criação de si, e de um mundo que lhe diz respeito, pela identificação com os níveis mais originários da vívida ação -- vívidação -- de si-mesmo-no-mundo.
A alternativa é a impotência.
O vivido, o corpo, em sua espontaneidade de ser no mundo, são a ação , são o ativo em sua potência e originalidade. Entendidos por Nietzsche como a dimensão nobre das forças que criam, que inventam, que dominam porque impõem formas novas e ricas.
O estudo, o reflexivo, o pensamento, a consciência reflexiva são da ordem do reativo. São da ordem da reação. Não criam. Servem à ordem da adaptação do ajustamento, da repetição, dos mecanismos. Forças reativas que, se têm o seu lugar no concerto da multiplicidade da vida, não dizem respeito à capacidade mais nobre da invenção e da criação, da invenção de si mesmo e do mundo, da invenção de alternativas, como o que é próprio às forças ativas.
Mais que isto, ao prevalecerem, as forças reativas determinam o império da nadificação da redução ao zero da potência, da impotência e da mesmidade: o império do niilismo. Ao concentrarem-se determinam o ressentimento -- a impotência amarga e vingativa contra tudo que é forte --, determinam a consciência infeliz, a culpa, -- o ressentimento, a vingatividade, retrofletidos contra si pelo próprio ressentido --, e a idéia ascética, o ideal ascético, que anima-se do princípio de que o vivido, a vida, ativa em sua espontaneidade e contingência, são um erro a ser negado e substituído pelo anseio reativo de uma vida além da vida, de um além mundo.
Desta perspectiva, é interessante observar a possível contradição em termos da expressão fenomeno logia. Na medida pelo menos em que o logos em questão esteja identificado com o conhecimento reflexivo e conceitual.
Neste sentido, não se trata, para a psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial, de um logos, no sentido reflexivo e conceitual. Tudo no vivido está evidentemente impregnado de um certo logos. Mas, especificamente, este logos não é o logos reflexivo e conceitual. Decididamente, para nós, não se trata de um estudo do fenômeno, ou do processo fenomenal, não se trata da reflexão acerca do vivido. Não se trata de um estudo. Mesmo que seja um estudo operado pelo próprio cliente de seu vivido. O vivido é em si já uma afirmação, um querer ativo, trata-se de querê-lo, de afirmá-lo em sua afirmação, de sua desdobr/ação, nas intensidades próprias de seu ativo devir. Trata-se de afirmar a sua expressividade ativa e inuitivamente.
Husserl parece ter pago um tributo demasiadamente pesado a suas vinculações Cartesianas quando enunciou como fenomeno logia o conjunto de suas idéias e de seu método. Ainda que entendamos a que tipo particular de logos ele se referia.
Infelizmente entre nós, esta possibilidade de ambiguidade, e própria super valorização socrática da reflexão, geram mal-entendidos. Não é raro encontrar quem ache que o fenomenal está destinado a ser necessariamente objeto da nobre reflexão. Ou que quando falamos de fenomenologia estamos falando de um estudo, de uma análise do fenomenal. Não se trata disto. O que do fenomenal não é acessível no próprio fenomenal jamais será elucidado pela reflexão. O fenomenal é um logos pré conceitual e pré reflexivo, um conhecer que só é acessível em sua própria vivência e, em particular, em sua própria expressividade, mais ou menos motora.
Assim, é possível uma fenomenologia que não seja fenomenação?
Mesmo que esta ação não diga respeito à ação objetiva, mas à atividade de um vivido que se desdobra como consciência ativa, e que eventualmente enforma e prolonga-se na ação motora criativa e original, dialógica, no mundo. O fenomenal é sempre espontânea e incontroladamente ativo. O processo fenomenal, é fluxo ativo, que efetiva-se espontânea e afirmativamente no instante. Que pode ser negado por uma atitude negativa, ou que pode ser afirmado em sua afirm/ação, desdobrado em sua excitação, intensidades, incerteza e devir. É a fonte de nossa originalidade e criatividade.
De modo que o que é mais interessante para a prática da psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial é que o cliente interprete-se a si mesmo, fenomenativamente.
Estamos aqui num universo muito diferente do universo do conceito psicanalítico de interpretação. Interessa-nos que, a cada momento fundamentalmente relevante da sessão e do processo psicoterapêutico, o cliente possa identificar-se pontualmente com o seu vivido fenomenativo, e interpretá-lo fenomenativamente: interpretar-se fenomenativamente a si mesmo, do mesmo modo que um ator de teatro interpreta. Interessa-nos que o cliente potencialize-se como um intérprete de si próprio, e potencialize-se, desta forma, como uma artista de sua vida. Potencializando a sua criatividade no sentido da criação das condições de que ele necessita no mundo para a sua auto atualização, e no sentido da sua própria criação de si mesmo no mundo que lhe diz respeito.
Na prática da psicologia e psicoterapia, e filosoficamente, não é interessante uma fenomenologia que não seja fenomenação, afirmação da afirmação da vividez do fluxo incontrolado e espontâneo do processo fenomenal, vivido, e o seu prolongamento eventual em sua expressividade criativa. Ainda que o equívoco de uma tal fenômeno logia seja freqüentemente praticado ou preconizado por psicólogos e psicoterapeutas não convencidos do valor do projeto de uma inversão da inversão socrática.

De qualquer forma, não estaríamos melhor servidos pela expressão psicologia e psicoterapia fenomenativa existencial ?