domingo, 9 de agosto de 2009

Capítulo 3 AS CONDIÇÕES FACILITADORAS BÁSICAS COMO PRINCÍPIOS DE MÉTODO FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL III. GENUINIDADE.

Capítulo 3
AS CONDIÇÕES FACILITADORAS BÁSICAS COMO PRINCÍPIOS DE MÉTODO FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL
III. GENUINIDADE



As premissas da psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial, em especial tal como elas se constituem na Abordagem Centrada na Pessoa, requerem radicalidade em sua proposição e prática efetiva. Radicalidade no sentido original da palavra, de tomá-las efetivamente pela raiz.
A Consideração positiva incondicional pelo outro em sua outridade e por sua experiência viva, vivido, pontual -- em particular por sua experiência de si --, ou uma compreensão efetivamente empática do outro, enquanto diferente que nos encontra dialogicamente, que nos confronta, afronta e se revela -- ou não --, uma abertura para sua diferença pontual, não podem ser fingidos. É interessante atentar para os sentidos da palavra “fingir” :

“inventar, fabular, supor, fantasiar, aparentar, simular, dizer sem sinceridade, ser ou mostrar-se dissimulado, hipócrita; fazer crer que é: simular ser; dar-se ares; querer passar; dar-se ares de; querer passar por...”

A genuinidade é uma das condições básicas da concepção e da prática da psicoterapia, e das outras modalidades, da Abordagem Centrada na Pessoa. A genuinidade pessoal do profissional em uma relação que privilegia sempre e fundamentalmente o seu caráter dialógico e inter-humano, por sobre o valor de suas determinações institucionais e técnicas.
Na verdade, cumpre considerar que -- além de efetivar-se como uma opção, no sentido de impor-se por sobre o valor das determinações institucionais e técnicas da relação -- a genuinidade não é, apenas, uma questão de querer, mas efetivamente, também, uma questão de poder. Além de mera opção, ou de simples querer, a genuinidade requer a atualiz/ação de uma personalidade do terapeuta na qual assimilou-se satisfatoriamente, não apenas teoria e concepções técnicas, mas, sobretudo, valores e atitudes destes valores decorrentes.
Valores que assumem radicalmente a perspectiva da inocência da vida e do vivido, a inocência da existência, e a benignidade de sua afirmação plena, como processo natural de superação, fonte existencial de força e de criação. Valores que afirmam efetivamente os potenciais de auto regulação e de auto atualização de si próprio e do outro, a partir da própria vitalidade organísmica na sua relação com o mundo. Valores, e as atitudes deles decorrentes, que respeitam e privilegiam a afirmação da diferença de si próprio e do(s) outro(s), no contínuo processo de sua recriação.
De forma que a genuinidade, para além de uma mera enunciação, para além de um mero e retórico querer, para além mesmo da assimilação teórica de princípios filosóficos, requer a atualiz/ação de atitudes, decorrentes de valores que afirmam e celebram radicalmente a existência contingente do Eu e a contingente existência do Outro, e suas respectivas forças. Valores que afirmam, priorizam, respeitam e celebram, a existência e duração tensa de nossa relação dialógica.
A genuinidade, pois, vai sobrepor-se, ainda que respeite-as e afirme-as, às demandas institucionais da relação terapeuta cliente, ou outra qualquer relação, e a suas demandas técnicas, para privilegiar e valorizar a dialogicidade pontual e imediata, o vivido dialógico, da relação.
Desnecessário dizer que as determinações institucionais e técnicas da relação, tão vigentes, e os próprios valores vigentes na cultura da sociedade, da qual fazem parte o terapeuta e o cliente, e que freqüentemente opõem-se a um respeito pela diferença do outro, pela afirmação da sua e de nossa própria diferença, oferecem uma resistência a esta premissa da genuinidade na relação com o cliente das psicologias e psicoterapias fenomenológico existenciais. Colocam desafios à formação e desenvolvimento de profissionais que adotam a perspectiva destas abordagens.

INSTITUIÇÃO E GENUINIDADE
A instituição psicoterapia é uma instituição extremamente peculiar. Sedutora em seus supostos poderes, e efetivamente depositária de formas particulares de poder social. Surge historicamente como uma diferenciação da prática e poder médicos, naquilo que eles tinham de mais desconcertante, a prerrogativa do trato com os pacientes ditos psiquiátricos.
Ainda que muito tenha se diferenciado, a partir de suas origens, a psicoterapia guarda, todavia, estereótipos de poderes sociais que decorrem de suas origens.
Por outro lado, atualiza poderes efetivos que derivam do fato de que trabalha a condição de pessoas em momentos de crise. Crises que, se por um lado, configuram-se como crises existenciais pessoais, configuram-se, por outro lado, como crises do próprio sistema social, mais ou menos micro, do qual o indivíduo e o próprio terapeuta, pessoal e institucionalmente, fazem parte. Crises existenciais pessoais cuja natureza, dinâmica e resoluções atingem o destino dos processos próprios do sistema social do cliente e das pessoas outras que dele participam. Em especial porque, freqüentemente são, elas próprias, particularizações, em suas repercussões existenciais pessoais, de crises históricas e socioculturais do próprio sistema social, mais ou menos micro, de que o cliente faz parte.
De modo que o lugar social da psicoterapia e do psicoterapeuta, sua dimensão institucional, configuram-se como um lugar peculiar de poder. Um lugar virtual que pode ser ocupado de um modo mais ou menos competente. Um lugar que faz parte, com suas características e poderes, do próprio arsenal da psicoterapia e do psicoterapeuta, no sentido da produção de seus efeitos especificamente psicológicos e psicossociais, na relação com o cliente e com o seu micro sistema social.
Espaço da vivência intensa, desdobramento e resolução de conflitos pessoais, psico sócio culturais, em suas tensões específicas, a psicoterapia necessita, assim, de seus poderes, objetivos ou imaginários, no sentido de garantir-se e configurar-se efetivamente como um tal espaço. Em particular nos seus primórdios, e mesmo ainda hoje, quando tratava-se ou trata-se, eventualmente, de lidar basicamente com pessoas profundamente perturbadas, e com as tensões sociais geradoras ou decorrentes destes processos.
Esta necessidade distorce-se, evidentemente, quando a prática psicológica ou psiquiátrica caracterizava-se basicamente por um cunho eminentemente disciplinar, a serviço da padronização e da desconsideração, ou extinção da sigularidade e da diferença da existência e de suas condições.
De modo que este lugar social da psicoterapia e do psicoterapeuta exercem de um maneira geral, e em particular sobre os próprios psicoterapeutas, um fascínio peculiar em função de seus poderes, reais e/ou imginários.
Há, freqüentemente, uma tendência dos psicoterapeutas para identificarem-se com a instituição, com o lugar social, que ocupam. É confortável e útil estar-se protegido pelos poderes destes. Não raro, esta identificação passa a ser distorsivamente o fundamento da prática do profissional. Para ele, neste caso, bastaria esconder-se sob o manto protetor da instituição, cumprir as suas expectativas de papéis, realizar a sua ritualística, aprender o seu conhecimento e doutrina específicos, exercer e manipular os seus poderes...
Isto é evidentemente uma distorção. Mas origina-se na peculiaridade própria dos poderes sociais da psicologia e da psicoterapia, e de suas práticas.
De modo pertinente, mas freqüentemente de um modo também distorsivo, a psicanálise desenvolveu modos e ritualística específica para lidar com estes poderes e suas práticas. É interessante recordar os primórdios do trabalho de Freud, quando o hipnotismo tinha um lugar fundamental em suas práticas e teorias, tendo sido abandonado em seguida. Não obstante, algo do poder hipnótico, das demandas de prestígio e de poder do hipnotista restou sobre a figura do psicanalista, e do psicoterapeuta de um modo geral. Estamos longe de julgar estes e outros resíduos como inteiramente impertinentes e desprovidos de uma eficácia produtiva na relação com o cliente. Mas não é interessante, e é efetivamente danoso, quando estes resíduos, junto com os poderes e ilusões das determinações institucionais da condição do psicólogo ou psicoterapeuta, ou o pressuposto de suas habilidades filosóficas, teóricas ou técnicas, configuram-se como o fundamento oco e alucinatório de sua relação com o cliente. Ou, mais especificamente como uma fachada ou barreira, que protegem o terapeuta, e resguardam-no da participação em uma relação inter-humana e interpessoal natural com o cliente. As consequências para o cliente deste tipo de distorção podem variar, do meramente estéril, ao francamente destrutivo e aniquilador.

O desenvolvimento da psicologia e psicoterapia fenomenológico existenciais, em particular da Abordagem Centrada na Pessoa, marcou uma sensível mudança nestas perspectivas.
A psicologia e psicoterapia fenomenológico existenciais, contrapondo-se à ênfase técnica e à ênfase no papel institucional do psicoterapeuta, decorrente da psicanálise e de outras escolas de psicologia e psicoterapia, descobriu e inventou o valor de uma nova dimensão na atitude e auto concepção do psicoterapeuta ao longo do processo da psicoterapia. Ou seja: um relevamento da importância, afirmação e ênfase do papel institucional do psicoterapeuta no processo da relação com o cliente. Um relevamento de sua auto concepção como um técnico que aplica procedimentos técnicos no cliente ao longo de sua relação com ele. A valorização, ao lado do reconhecimento e preservação de sua condição institucional, da relação inter humana, dialógica, interpessoal, específica e imediata com o cliente.
Na medida em que estas abordagens passaram a valorizar, originalmente, a análise existencial e a afirmação pontual do seu vivido por parte do cliente, no momento e ao longo do processo da psicoterapia, o terapeuta careceu de valorizar mais e mais a sua própria condição natural como pessoa, o seu vivido e a sua própria atualidade existencial, na relação dialógica e inter humana com o cliente -- dentro dos limites da instituição em que ambos se encontravam --, em detrimento da ênfase em seu papel institucional e em sua condição técnica.
Evidentemente que isto não significou uma tentativa de negar a condição institucional do terapeuta, da terapia e do próprio cliente, mas, antes, a compreensão forte da necessidade de superá-los, de não se ficar a elas limitado, e principalmente de não utilizar a condição institucional como uma trincheira, como uma fachada, como uma armadura, na relação com o cliente.
Descobriu-se a condição institucional do psicoterapeuta e da psicoterapia como chão da relação psicoterapêutica, e não como teto. Descobriu-se e enfatizou-se -- para além da importância da aplicação de fatores técnicos ou teóricos -- a importância e o valor existenciais e psicodinâmicos da relação genuinamente inter humana entre o terapeuta e o cliente.
De modo que, se interessa para o terapeuta que o cliente se coloque numa atitude fenomenológica, que se entregue a sua experiência organísmica e à concretude de sua existência, que ele se entregue ao seu vivido e ao natural fluxo deste como expressivo de sua atualidade existencial, ao longo da sessão e do processo da terapia, interessa ao psicoterapeuta, igualmente, relativizar a rigidez, o peso e inflexibilidade de sua própria condição e papel institucionais e técnicos, colocando-os em seus lugares e funções próprios. Interessa-lhe conceber-se a si próprio, de um modo simples, como uma pessoa em relação dialógica e inter humana com outra, com a expressividade de seu vivido e de sua atualidade existencial. Interessa-lhe expressar o seu próprio vivido e atualidade existencial na relação com o cliente, na medida em que isto lhe pareça pertinente. A psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial, em particular na ACP, descobriu aí a sua riqueza.
Conceber-se como um técnico que operacionaliza um certo conjunto de teorias e técnicas na relação com o cliente, ou mera e rigidamente como um ser e estereótipo institucional, é inteiramente incompatível com esta proposta.
No momento em que a questão passou a ser a de uma valorização da perspectiva do vivido e de sua afirmação, o próprio vivido, e sua afirmação pontual, tanto para o cliente como para o terapeuta, passou a ser a referência e o critério fundamentais.

Como conclusão, podemos dizer que um critério fundamental para o desempenho de um terapeuta fenomenológico existencial organísmico, de um terapeuta centrado na pessoa, é o privilegiamento da perspectiva de seu próprio vivido, de sua própria experiência organísmica ao longo da relação com o cliente, como referência de suas atitudes e comportamentos na relação com ele.
Ou seja, para o psicoterapeuta -- ainda que reconheça, assuma-os e atualize-os -- não interessa valorizar desmedidamente a sua condição e poderes institucionais na relação com o cliente. Não interessa valorizar primordialmente a sua condição de técnico ou de aplicador de uma teoria específica.
Interessa valorizar a sua relação imediata e inter humana com o cliente, a partir de sua própria perspectiva vivencial organísmica do processo desta relação. Ou seja, interessa-lhe valorizar uma abertura para o seu próprio vivido, uma abertura para a sua própria experiência organísmica pessoal, pontual e intransferível, ao longo do processo da relação com o cliente. Interessa-lhe cultivar a sua própria liberdade experiencial, que lhe permita uma disponibilidade fluída de sua experiência organísmica, interssa-lhe, sobretudo, valorizar privilegiadamente esta sua experiência organísmica, o seu vivido, como referência e mobilizador de seus valores, de suas verdades, de suas atitudes, comportamento e ações, na relação com o cliente.

Em termos psicodinâmicos, e numa linguagem da teoria do processo da terapia da Abordagem Centrada na Pessoa, isto significa estar livre o terapeuta do estado de desacordo que se pode instalar entre a experiência organísmica e a consciência, em função de interceptação e de bloqueio e/ou distorção do fluxo desta experiência, em seu processo de simbolização como consciência.

Desta forma, a possibilidade da genuidade do terapeuta na sua relação com o cliente decorre da constância de sua própria liberdade experiencial como pessoa. Ou seja, decorre da possibilidade de que o fluxo de sua própria experiência organísmica possa constituir livremente o processo de sua consciência. Da mesma forma que constituir livremente o processo de sua comunicação, comportamentos e atitudes, na relação.

Dadas estas condições, relativizados -- ainda que devidamente considerados -- a condição e os papéis institucionais, os seus conhecimentos técnicos, filosóficos, ou teóricos; assumidos os valores e atitudes do respeito pelo outro, por sua diferença, por sua singularidade, e pelo seu vivido, como fundamento e produção do sentido de seu eu e do mundo que lhe diz respeito; valorizada a sua própria experiência organísmica na relação com o cliente, o psicólogo ou o terapeuta podem, efetivamente, considerar genuinamente o cliente de um modo positivamente incondicional, podem potencializar-se para uma compreensão efetivamente empática do cliente, ao longo do processo de sua relação dialógica e inter humana com ele.